Pepita era filha única de Apolinária e Virgulino Coelho da Silva, que se conheceram no garimpo de Serra Pelada. Daí o nome dado à filha. Inspirado na fortuna que fizeram e que custou a Virgulino o comprometimento de vários órgãos, pelo contato com o mercúrio usado na extração do ouro. Antes, porém, de começar a sentir os efeitos da contaminação, Virgulino desembestou pelo caminho da infidelidade a Naná, como chamava sua esposa. E haja a emprenhar quem caísse na sua lábia.
Apolinária não aguentou as traições do marido e dele divorciou-se. Foi morar com Pepita, que cedo saiu de casa para casar-se com Romeu, seu primeiro namorado. Mas seu casamento não durou muito tempo porque ambos eram jovens, desempregados e Romeu começou a beber e a bater em Pepita sempre que chegava bêbado em casa.
Orientada para denunciar o marido, Pepita dizia que não ia ganhar nada com isso. Só tinha casado para sair de casa, para escapar de seu próprio pai, que dela abusava desde quando ela fizera 12 anos. Aos 16 anos o pai a engravidara e a levou para fazer um aborto. Ameaçou-a de morte se contasse à mãe.
Pepita tinha tudo para odiar o pai. Foi fácil compartilhar o ódio que a mãe passara a alimentar contra seu pai. Odiava tanto o pai que quando Virgulino estava internado tratando de um câncer, Pepita só foi visitá-lo depois que ele ligou várias vezes implorando pelo perdão dela.
- Oh! Filha, que bom! Obrigado por ter vindo!
Pepita, sem sorrir, foi logo dizendo, com rispidez: – Eu te perdoo, mas antes assina esses papéis aqui.
Eram procurações beneficiando Pepita em prejuízo dos demais filhos que Virgulino tivera com as mulheres que sucumbiam ao poder de sua conversa ou de sua conta bancária.
Virgulino enfureceu-se tanto que encontrou forças para levantar-se da cama. Num brusco e violento movimento, arrancou o tubo de alimentação de soro que estava em seu braço. O suporte de ferro onde estava pendurado o soro caiu fazendo um grande barulho. Médicos e enfermeiros correram na direção do quarto, mas não conseguiam entrar. De costas, Pepita, de dedo em riste, ocupando a porta, gritava: – Eu quero é que tu morras mesmo, velho safado! Tu não vales nada! Vou dizer para todo mundo quem tu és, Virgulino de uma figa. És um merda!
Foi preciso que os seguranças do hospital fossem chamados para retirar Pepita, que estava exasperada, insultando todos que se aproximavam dela. Pepita era assim. Geniosa. Temperamental. Obsessiva. Alguém já dissera que ela tinha transtorno de personalidade borderline. Só falava gritando, dando ordens com sua voz esganiçada. Por isso mesmo foi surpresa quando ela apareceu casada com Paul Bocuse.
Filho de pais franceses, que tinham vindo para o Brasil, Paul fora batizado com o nome do grande gastrônomo graças à paixão de seus pais pela culinária francesa e à mesa cativa que o famoso chef lhes reservava sempre no Auberge du Pont Collonges, principal restaurante de luxo de Bocuse, perto de Lyon, na França.
Jovem pacato, alegre, cujo esporte era jogar bocha com os amigos, seu temperamento era o oposto do de Pepita. Quase não falava. Só ria. Principalmente quando tomava um Chânteauneuf-du-Pape. O vício pelo requintado vinho surgiu depois de ler A Cerimônia do Adeus, de Simone de Beauvoir. Ela conta que era a bebida preferida de Jean-Paul Sartre, com quem vivia o que chamavam de matrimônio aberto. Paul quis ter a mesma experiência do famoso casal francês, mas seu romance com Michelle Aznavour não deu certo. Ela queria que o matrimônio fosse aberto só para ela. Afastaram-se. Não se viram mais. Paul veio com os pais para o Brasil. Antes, Paul adquiriu a franquia do Café de Flore para inaugurá-lo no Brasil. Foi motivado pelo simbolismo que a presença de Simone e Sartre emprestaram ao famoso café parisiense. No Brasil, Paul montou uma bem-sucedida rede de Café de Flore pelo país.
Pepita tinha tudo, sem precisar trabalhar. Mansão em Fortaleza, em Miami, na Riviera francesa e nas Ilhas Seychelles. E viajava como nunca imaginou na vida. Nas viagens, permitia-se romances passageiros. - É para oxigenar o casamento, dizia às amigas confidentes e até à sua mãe, que fazia de tudo para acobertar a conduta da filha. Para Anastácia, – Homem não presta, minha filha! Não viu teu pai? E teu maridinho é sonso. Não facilita com ele.
Mas Pepita não tinha o que reclamar de Paul, pois parecia não se incomodar com nada que ela fizesse, nem de suas viagens, seus gastos e nem quando uma voz masculina atendia ao telefone quando ele retornava alguma ligação para o celular da esposa ou para o telefone do quarto do hotel onde ela dizia estar hospedada.
Pepita só não sabia – ou não queria admitir – era que Paul estava infeliz. Assim, sentindo-se abandonado, Paul fez uma viagem a Paris. Nostálgico, foi matar a saudade no endereço de n. 172 do Boulevard Saint-Germain, em Paris. O Café de Flore. Foi quando sentiu uma súbita e incontida alegria. - Michelle! – chamou, com um largo sorriso no rosto. Ela, sentada, sozinha, levantou-se e foi ao seu encontro quase correndo. Abraçaram-se e beijaram-se intensa e demoradamente.
Divertiram-se durante três dias. Foram a Barcelona visitar a igreja da Sagrada Família, obra projetada pelo catalão Antoni Gaudi e em construção há mais de uma centena de anos. Envolvidos no ambiente místico e artístico, assumiram o compromisso de recomeçar, em matrimônio monogâmico. - Je vais divorcer. Notre mariage il est fini a longtemps, prometeu Paul, que voltou para o Brasil e conversou com seus pais. Contou sobre o encontro com Michelle e disse que pretendia divorciar-se.
- Meu casamento não existe, disse a eles, pensando que era uma grande novidade.
- Pensávamos que você não sabia. Ainda bem que você está tomando a decisão certa. Nunca é tarde para isso, disse seu pai com um sorriso de alívio. – Essa mulher só quer explorar você. Não gosta de você. Você é apenas um provedor para ela. Veja se ela para aqui no Brasil com você. Está sempre viajando. Inventa motivos.
- Hoje mesmo vou ligar para ela. Está nas Ilhas Seychelles. Ela pensa que eu não sei, mas o Fernando Collor está lá também. Ela vai fazer a maior confusão do mundo. Pode apostar.
Não deu outra – Divórcio? De jeito nenhum. Como é que eu fico? - Você vai ficar muito bem. Você vai ficar com as mansões daqui, de Miami e daí. E mais a renda bruta de dois dos cafés. Ficarei com a da Riviera.
- Da França? Negativo. Quero essa também. O que você quer fazer comigo é violência patrimonial. A Lei Maria da Penha me protege. Basta eu dizer isso numa petição e logo tu vais estar com uma MPU no teu calcanhar. Estás pensando que eu não sei que estás às voltas com aquela sirigaita francesa?!!!
- Respeite!
- Respeitar o quê? Estou sabendo de tudo. Te prepara. Só assino o divórcio se me deres a casa da Riviera também. E a renda de quatro dos cafés. E mais as despesas de Arnold, Brutus e Hulk.
Pepita agiu rápido. Paul Bocuse não conseguia entender nada. Recebera uma notificação judicial dizendo que estava proibido de frequentar a casa onde morava, não deveria procurar contato com Pepita, não deveria se aproximar dela a uma distância inferior a duzentos metros e foi até proibido de visitar o filho, sem sequer ter filho com ela ou qualquer outra pessoa.
Mostrou a notificação aos pais, que sugeriram que ele procurasse se informar na Vara de onde saíra aquela notificação. Verificaram que não tinha essa informação. Estava assinada por juiz plantonista. Era melhor procurar um advogado. E assim fez. - Caro senhor Paul – disse-lhe o advogado -, o senhor está numa grande enrascada. Esse negócio de Lei Maria da Penha tem causado essas injustiças, apesar de ser uma lei muito boa. Era necessária, mas tem causado problemas para pessoas inocentes, decentes mesmo, como eu vejo que é o seu caso, por causa de pessoas inescrupulosas, de má-fé, que estão usando a lei para perseguir desavisados.
Acrescentou: – Consegui acessar o seu processo. A decisão proferida é igual para quase todo mundo. Tipo um formulário. Por isso que o juiz proibiu o senhor de ver o filho que o senhor não tem. Na verdade, ele não proibiu. O senhor até pode ver, desde que seja na presença de alguém designado pela Justiça ou de pessoa da confiança do casal. Perdão! Explicação desnecessária, como a medida, porque o senhor nem tem filho. - Pois bem, mas por essa medida aqui, o senhor não pode mais voltar para a casa onde morava com sua esposa. Nem telefonar para ela. Nem se aproximar dela até uma distância de duzentos metros. Se o senhor não cumprir isso o senhor pode ser preso.
- Mas o que foi que eu fiz para receber isso? Tem defesa?
- Pelo visto, você não fez nada. Apenas se casou com a pessoa errada, que agora, com perdão da palavra, quer ferrar com você. Tem defesa, mas sua ficha já está feita. Você está no cadastro de homens que praticaram violência doméstica contra mulher.
- Mas como, doutor? Perguntou, para ouvir estarrecido: – Está na lei, meu amigo. Na jurisprudência. Na doutrina. A palavra da mulher é que vale. Se ela disse que você praticou violência, caso encerrado. Você é um agressor. Foram dadas medidas protetivas de urgência contra você porque você agora é um agressor. É para proteger sua esposa.
- Doutor, eu até entendo que o juiz e até o delegado de polícia tomem medidas para prevenir uma tragédia, a consumação de uma ameaça. Mas eu não fiz nada. Ao contrário. Banco todos os luxos de Pepita. Dela, agora, só quero distância. Que me esqueça.
- Pois é aí que está a resposta, meu caro. Você disse a ela que quer se divorciar. Vai matar a galinha dos ovos de ouro, vai secar a fonte.
- Mas estou dando para ela todo o patrimônio que eu construí com meu suor. Ela não contribuiu com nada. Só gastando. Estou até concordando com a exigência dela de dar a renda de quatro dos cafés de minha rede. E ela continua exigindo. Quer a casa da Riviera francesa e a manutenção das despesas de Arnold, Brutus e Hulk.
- Mas você disse que não tiveram filhos.
- E não tivemos mesmo. São os cachorros que ela cria em Miami. Presentes dos amantes dela. Posso até concordar em dar a casa da Riviera, mas sustentar esses cachorros, nem a pau!!!! Se eu concordar, doutor, ela vai querer mais e mais e mais e não vai ter fim…
- Vamos ver o que podemos fazer, disse o advogado tentando confortar Paul. Mas fique atento, porque as medidas protetivas vão se estender indefinidamente, por causa da pandemia. Não facilite. Com a Lei Maria da Penha não se brinca.
Dias depois Pepita voltou para o Brasil. Contratou um detetive para seguir os passos de Paul e saber sua rotina. Assim foi fácil saber onde ele estaria para armar um flagrante e prendê-lo por descumprimento de medida protetiva. Conhecendo o roteiro de Paul e sabendo que ele passaria cedo na lanchonete de conveniência do posto de combustível onde costumava abastecer seu veículo, para tomar café, Pepita deixou seu Rolls-Royce Sweptail em casa e alugou um Kwid branco, para não ser notada, pois era um carro bastante vendido na cidade. Postou-se no acostamento, próximo à entrada do pátio do posto e aguardou Paul aproximar-se. Seu Jeep Renegade amarelo era fácil de identificar. Para garantir que Paul manteria o roteiro, fez com que o detetive marcasse um encontro com ele na loja de conveniência, para falar sobre a franquia parisiense.
Com o celular na mão e olhos no retrovisor, viu o Jeep de Paul. Teve tempo ainda de mandar uma mensagem e jogar o celular janela a fora. Com o pé no acelerador e no freio, aguardou Paul aproximar-se. O pisca-pisca do veículo de Paul sinalizava que ia manobrar para a direita. Aproximava-se da entrada do posto quando Pepita tirou o pé do freio e o Kwid pôs-se na direção em que vinha o Jeep amarelo. Num relance, Paul reconheceu Pepita e conseguiu frear o veículo, para evitar o choque. Não vinha com velocidade. Mas não conseguiu evitar a tragédia. Um ônibus que vinha em alta velocidade bateu forte contra a traseira do Renegade, que atingiu o Kwid, surpreendendo Pepita. Ela planejara uma colisão mais leve. Aturdida, perdeu o controle e o Kwid deslizou até onde um bombeiro abastecia o Logan de um casal que levava suas filhas trigêmeas para comemorar seus aniversários de um ano, com os avós maternos.
O Kwid bateu de frente na porta do Logan. O bombeiro caiu no chão contraindo a mão no gatilho da mangueira, jogando combustível para todo lado. Foi instantâneo o surgimento das labaredas e da fumaça, seguidas de explosões assustadoras. Paul desceu do carro, mas não pôde fazer nada para salvar Pepita, o casal com suas filhas e o bombeiro. Não adiantaram de nada os extintores de incêndio que as pessoas que estavam próximas do local quiseram usar, depois que se recompuseram do desespero que tomou conta de todos, levando-os a correr para o mais distante possível do local.
Na confusão, Paul não viu a chegada da Patrulha Maria da Penha. Só deu conta quando se aproximaram dele e lhe deram ordem de prisão. Alguém o apontara como o condutor do Jeep amarelo.
Algemado e posto no camburão da Polícia Militar pelo pessoal da Patrulha Maria da Penha, Paul não reagiu. Não conseguia compreender nada. Tentava entender o que aconteceu e só pensava nas pessoas carbonizadas. Quem seriam elas, pensava, angustiando-se inclusive porque sabia que poderia ser acusado de assassinato de todas elas e, o que é pior, de feminicídio, pois matara a própria esposa, de quem não poderia aproximar-se por menos de duzentos metros. Ninguém acreditaria que teria sido coincidência. Ninguém acreditaria que a vontade dele era ficar o mais distante que pudesse de Pepita. Se tivesse uma lei que o protegesse, era ele quem gostaria de ter uma medida protetiva contra ela.
O detetive ainda pensou em depor em favor de Paul, mas foi desaconselhado por amigos a quem confidenciara o fato, dizendo-se atormentado, apesar de ter apenas feito seu trabalho corretamente. Disseram-lhe que ele poderia ser acusado de cumplicidade, porque não tinha provas de que ela o contratara. O contato dela com ele era sempre presencial, verbal e reservado. Só pagava em dinheiro. Poderia ser acusado de ter informado a ele a localização dela, pois ela é que estava parada no estacionamento.
Também não adiantaria muito. Antes de acelerar o carro, Pepita havia mandado a mensagem que preparara cuidadosamente para a Patrulha Maria da Penha: – Socorro! Por favor. Paul quer me matar. Bateu meu carro e está vindo pra cima de mim. Socooooorro!!!
Acusado de 6 homicídios e 1 feminicídio, Paul Bocuse foi condenado a 210 anos. Consola-se lendo O sol ainda brilha, de Anthony Ray Hinton. História dos 30 anos que Ray, inocente, passou no corredor da morte, no Alabama. Paul, pelo menos, não estava condenado à morte.
Estuprado na penitenciária, suicidou-se. Na parede de sua cela, deixou escrito uma frase do livro que foi seu último companheiro: Não há um lugar mais triste para se estar no mundo do que um lugar onde não há esperança. (Conto classificado em 1o lugar no I Concurso Literário Maria Firmina dos Reis, promovido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em 2021, com a temática da violência doméstica e familiar contra a mulher. O Concurso tinha três modalidades: contos, crônicas e poesia; e duas categorias: adultos e adolescentes. O autor, Carlos Nina, participou na modalidade Contos, categoria Adultos. A premiação dos vencedores foi na Associação dos Magistrados do Maranhão, dia 13 de agosto de 2021.)