sexta-feira, 29 de março de 2024

A volta dos que não foram

A amizade que desfrutei do querido amigo Henrique de Araújo Pereira fez-me responsável, juntamente com Mariazinha, sua esposa, pela publicação de dois livros seus, dos quais fiz o prefácio – Pensamentos, Sentimentos e Gozações em Verso (edição do autor, 2010) e Conversas telepáticas e outras histórias (Ponto a Ponto Gráfica Digital, 2018).
O leito do home care, onde Henrique sobreviveu nos últimos quatro anos, não o impediram de sonhar com a publicação do terceiro livro, cujo título – antes mesmo de se ver acometido pelo mal que lhe levou um dos membros inferiores e o reteve acamado – ele já havia escolhido: A volta dos que não foram.
É uma antiga frase conhecida por quem gosta de conversar sobre cinema. Não sei se alguém deu esse nome a algum filme. Ou a livro. Mas, conhecendo Henrique, não tive dúvidas de que era sério. Ele, com certeza, teria uma boa história para explicar o título. Inteligente, ético, decente, movido à solidariedade, tinha no sangue uma boa dose de humor, que nem as reiteradas sessões de hemodiálise conseguiram afetar. Seus textos vão da reflexão séria à expressão de sua verve gozadora.
Estamos trabalhando, Mariazinha e eu, na organização do material de seu último livro, mantendo intacto o título por ele escolhido, como foi de sua vontade até quando pôde, antes de seu falecimento, tratar conosco do livro tão ansiado.
Tenho, entretanto, uma interpretação pessoal para esse título. Ocorreu-me quando pensei em escrever este artigo, para registrar a intensidade das publicações de obras de autores maranhenses nos últimos anos.
Não costumo explicar os títulos de meus artigos. Alguns, sei, parecem agressivos. Outros, não apontam claramente para o tema. Nem sempre é fácil dar título a um texto. Neste caso, porém, decidi explicar, por três razões: 1) Henrique faz parte dos que não foram; 2) a outra opção que me ocorreu era O retorno da Atenas; 3) a explicação faz parte da mensagem que gostaria de dar aos leitores.
Resisto, intimamente, a essas comparações, nas quais as pessoas dão, a fatos novos, nomes de fatos ou pessoas que deixaram características marcantes. É compreensível a comparação, mas, daí a despersonalizar o novo, para o identificar carimbando-o com uma referência anterior, não me parece justo.
Pretendia dizer que, com os recentes lançamentos de livros, São Luís estaria renascendo como Atenas brasileira – como ficou conhecida, para depois ser chamada de Apenas brasileira, porque teriam desaparecido seus intelectuais, escritores, romancistas e poetas.
Não desapareceram. Estavam e estão aí mesmo. Mais ou menos reclusos, com mais ou menos espaços na mídia, mais ou menos bafejados com recursos para tornar públicas e disponíveis suas obras.
Destaquei em artigo recente a importância da livraria da AMEI – Associação Maranhense de Escritores Independentes, iniciativa do português José Viegas, há poucos anos, com a qual propiciou um espaço onde obras de maranhenses não conhecidos amplamente pudessem ter melhor visibilidade. Com isso os tem apresentado a um público interessado maior, estimulando os autores a mais produzir e publicar
Da época da chamada Atenas brasileira até a AMEI houve momentos de incentivo e apoio a escritores, a exemplo do sob a égide do SIOGE (Serviço de Imprensa e Obras Gráficas do Estado do Maranhão, que imprimia o Diário Oficial do Estado) e da Academia Maranhense de Letras, notadamente com apoio da ALUMAR.
Contudo, a maioria dos beneficiados era de pessoas que se consideravam ou eram consideradas moradoras da Arcádia. Assim, especialmente merecedoras de distinção, pelo seu autoproclamado ou insinuado diferencial de conhecimentos literários. Tinham, portanto, mais direito a holofotes do que Jim Carrey veio a ter com as câmeras voltadas para Truman Burbank.
Autores independentes enfrentaram com altivez essa barreira do poder econômico, político e social e publicaram seus livros. Obras de relevante valor literário e informativo foram, não solene, mas, insolentemente ignoradas por instituições culturais e até pelas que seus autores a elas dedicaram suas vidas. A motivação era explícita: não faziam parte do chamado “alto clero”, nem tinham padrinhos nessas rodinhas seletivas, discriminatórias e preconceituosas.
O importante é que o casulo foi rompido e nos últimos anos têm-se visto uma intensa e saudável publicação de autores maranhenses e sobre o Maranhão, abordando os mais diversos aspectos da cultura, tecnologia, ciência, filosofia, religião e muito mais, revelando um universo fantástico de conhecimento e criatividade.
Por isso mesmo penso que não se trata de um renascer, de um retorno, mas, como diria Henrique de Araújo Pereira, com a espirituosidade de seu verbo, da volta dos que não foram. Nem ele foi. Continua por aí, inclusive nas prateleiras da Academia Maranhense de Letras e da AMEI (salvo se já vendidos os exemplares que nelas foram disponibilizados).
Devo dizer que a provocação deste texto me ocorreu na última sexta-feira (11/03/2022), no lançamento do livro do magistrado Agenor Gomes, Maria Firmina dos Reis e o cotidiano da escravidão no Brasil, na sede da Associação dos Magistrados do Maranhão, no Calhau, em São Luís. No livro, Agenor trata também de preconceito e discriminação, num patamar extremo, de cuja resistência Maria Firmina dos Reis tem se transformado em referência e símbolo.
Editado pela Academia Maranhense de Letras, o livro de Agenor Gomes aborda a história da autora de “Ursula”, “reconhecida nacional e internacionalmente como a primeira romancista brasileira”, como informa Lourival Serejo, na “orelha” do livro, destacando que o autor “explorou com profundidade o ambiente social e político da vida de Maria Firmina.”
O próprio Lourival Serejo, que está prestes a encerrar seu mandato à frente do Tribunal de Justiça do Maranhão e a assumir a direção da Academia Maranhense de Letras, colunista permanente do Jornal do Maranhão, da Arquidiocese de São Luís, é autor de vários livros sobre direito (constitucional, de família, eleitoral), memórias, ficção, o último dos quais – O tormento de Santiago (Viegas Editora, 2020) – é fruto de sua criatividade, experiência e capacidade de observação. Nele Lourival Serejo traça o perfil de juízes que poderiam julgar o caso de Santiago; que julgaram, estão julgando ou poderão julgar as condutas de qualquer cidadão. A diversidade, a ansiedade e a dúvida causam o tormento. O de Santiago só não foi maior porque o alfabeto só tem 26 letras.
Para continuar no rol de autores que integram o Judiciário do Maranhão, refiro-me a Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro, que, pela Lumen Juris (2019), publicou De Cabral à Maria da Penha, rica “abordagem constitucional, infraconstitucional e jurisprudencial sobre a mulher e a violência doméstica”. Livro que tive o prazer de citar para fundamentar recente artigo que publiquei sobre a Lei Maria da Penha.
Em 2016, pela 360º Gráfica Editora, o magistrado José Américo Abreu Costa, articulista primoroso, publicou Ensaios Jurídicos, reunindo estudos escritos em trinta anos de carreira jurídica, abordando, com acuidade, temas complexos da atividade jurídica, como hermenêutica, logoterapia e crime, direito natural, responsabilidade penal da pessoa jurídica, paranoia, tema sobre o qual tenho tido a oportunidade de citar o texto de Américo Costa em juízo, pela clareza e precisão com que o autor trata dessa doença que, como assinala o autor, “merece especial consideração pelos seus efeitos e consequências médico-legais”.
José Eulálio Figueiredo de Almeida, compositor de letras musicais, marchinhas, toadas, é poeta e escritor. Autor de livros sobre questões jurídicas, poesia e mundanas. Em Vidas Profanas (2ª ed. Ponto a Ponto Gráfica Digital, 2018), a exemplo da sensibilidade de Lopes Bogéa, que, em Pedras da Rua (1988), escreveu sobre personagens populares que perambulavam pelas ruas da cidade, Eulálio fez uma incursão nas “agruras da vida mundana no ambiente nefasto que a sociedade moralista da época chamava de Zona do Baixo Meretrício”, no dizer de Josemar Lopes Santos, escritor, membro da AML, então juiz de direito (1ª edição, 2015) e hoje desembargador do Tribunal de Justiça do Maranhão.
Pela Editora JusPodivm (2020), o magistrado Paulo Brasil Menezes publicou Fake News. Pela Lumen Juris (2020), Diálogos Judiciais entre Cortes Internacionais.
Para não mencionar apenas magistrados, trago o casal Cristiane Gomes Coelho Maia Lago e Alexandre Maia Lago. Ela, que já tinha lançado pela SVT Editora (2019) Drogas & Tribunal do Júri – uma análise da prevenção como política pública, estudo comparado Brasil-Portugal”, publicou, pela Viegas Editora (2020), Júri em Poesia, para o qual transportou toda a sensibilidade que tem sabido preservar na dramática atividade de Promotora de Justiça com atuação no Tribunal do Júri. Informa a autora que se questionava sobre “como poderia ver, sentir e escrever poesias a partir de circunstâncias tão tristes e devastadoras.” Passou a anotar as que lhe vinham à mente. Impôs-se o “registro da forma que conhecia desde criança: escrevendo versos.” No Prefácio, disse Osmar Gomes (juiz de direito igualmente autor de várias obras), “A autora faz uma reflexão da dor sentida pela família da vítima, e do criminoso, sobretudo dos pais que choram a perda e a prisão dos filhos”. Afinal, diz a promotora e poeta: “Tem gente do bem! Tem gente do mal! Tem acidente, incidente. Vocação e intenção.”
Alexandre Lago, advogado, publicou pela EDUFMA três livros (Letras de Sempre), reunindo os artigos que já havia divulgado na coluna que mantém no Jornal Pequeno, de São Luís, e que versam sobre obras clássicas da literatura mundial e seus autores. Em seus textos, claros e objetivos, Alexandre Lago resume o enredo da obra, faz observações críticas e informa dados relevantes sobre a obra e o autor. No Jornal do Maranhão, editado pela Arquidiocese de São Luís, Alexandre foi assíduo colaborador, com artigos e entrevistas.
Em 2009 (All Print Editora), um jovem advogado, André Gonzalez Cruz, mostrava como o maranhense não precisa ter nascido em Atenas ou pertencer à Arcádia para escrever com facilidade sobre o que se dispuser. Publicou um estudo intitulado A nulidade absoluta da audiência de instrução criminal realizada sem a presença do Ministério Público, obra apresentada pela então Procuradora-Geral de Justiça do Maranhão, Maria de Fátima Travassos Cordeiro, e pelo jurista Fernando Capez, que disse: “O Autor é um cientista do Direito, com traços singulares, pois tem a ousadia de entrar num tema tão delicado.”
Saindo do universo jurídico, lembro o livro de Silvia Jorge Dino, Unindo os tempos (Viegas Editora, 2019). Nele a autora reuniu memórias de sua família e, inevitavelmente, de parte da história do Maranhão e de São Luís, pois seu pai, Antônio Dino, foi deputado federal e governador do Maranhão, e seu avô, Gonçalo Moreira Lima, deputado estadual.
Por fim, refiro-me ao professor José Cloves Verde Saraiva, que foi o editor, dentre outras obras de sua autoria, de Malba Tahan visita São Luís e outras histórias, já na terceira edição em 2007.
Poderia citar muitos outros magistrados (Cleones Carvalho Cunha, José de Ribamar Castro), membros do Ministério Público (Maria de Fátima Travassos Cordeiro, Teodoro Peres Neto), advogados (Raimundo Ferreira Marques, Roque Pires Macatrão), militares (Carlos Augusto Furtado Moreira), mas se me entristece não comportar neste texto já longo mais citações, alegra-me que essa lista seja de incontáveis autores cujas obras têm um espaço democrático na livraria AMEI.
Por tudo isso vejo propriedade no título que Henrique de Araújo Pereira quer para seu livro. O Maranhão não precisa da referência de Atenas. É o que é. E que seja como disse o imortal Josemar Lopes Santos, da AML, na orelha de Vidas Profanas: “Os escritores são benfeitores da vida humana.”
Espera-se que assim seja, apesar dos efeitos atribuídos a Os sofrimentos do jovem Werther, de Johann Wolfgang Von Goethe, Palavras Cínicas, de Albino Forjaz de Sampaio, e O apanhador no campo de centeio, de Jerome David Salinger.

Carlos Nina é Advogado e jornalista

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