quarta-feira, 24 de abril de 2024

Crônica da despedida de Natal

A longevidade é sobrecarregada de um fardo especial; aquele nos deixa cada vez mais sós. “O vento chega, o besouro foge/ folha por folha a rosa se desfolha e cai”. É o ciclo da vida e sem Hakuna Matata. Pura e simplesmente o ciclo da vida.

Mais um companheiro que se vai…

Quantas vivências, quanta intensidade. Os segredos mais ocultos, as vergonhas, os sonhos, tudo dividido milímetro por milímetro. E agora o companheiro se vai. Não sem aviso, não sem despedida, não sem agradecimento, marcas de uma relação honesta, de troca de cuidados, quando a confiança, o cuidado são a baliza da vida.

Tudo registrado entre nós. Desde as enfadonhas reuniões profissionais, às mais íntimas seduções executadas nas noites de lua nova.

Seis anos de convivência e seis dos anos mais intensos, mais sofridos, com mudanças repentinas, com rupturas, com dor. E também uma vida de recomeços. Dentro de você, companheiro velho, quantas vezes fui buscar o alimento poético esquecido, o projeto de retórica, o plano de sobrevivência; e você lá, sempre pronto e apto para um socorro, um conforto.

Ninguém sabe mais de mim, talvez nem eu mesmo. Quantos vezes neguei atitudes que tenho certeza que você registrou… E quantas vezes, você, delicadamente me permitiu escorraçar lembranças ingratas, dolorosas… E quantas outras vezes, você fez questão de me lembrar de ações, que, embora me fizessem sofrer, me faziam seguir em frente, firme, consciente de traições, injustiças, mal zelos.

Quantas madrugadas no Apeadouro, apenas nós e a lua e uma dose gim atravessamos as madrugadas; quantas outras você foi coadjuvante, quietinho no seu canto, longe da lua, discreto, mas atento aos gemidos mais apaixonados.

Você esteve comigo na mudança de apartamento, registrando cada passo que dei, cada móvel que montei; registrou a vizinhança antiga e a nova nos seus últimos e primeiros dias.

Você foi um guerreiro! Foi difícil ver sua agonia febril na sexta feira no supermercado, tentando desesperadamente se reiniciar e achar o sinal… até chegar aos 40 graus de febre. Já lá em casa, foi triste te levar ao corredor, onde você conseguia respirar e dar sinais de vida e participar comigo de tudo, cheio de vida e de competência.
Mas deu. Você cumpriu seu papel com decência, competência e dignidade. Sei que vc ainda está ali. Não fui capaz de deixar você morrer. Fique assim dormindo, deixo consigo nossas últimas vivências. Sei que uma hora você apagará de vez. Mas terá um descanso honesto.

Você, com sua delicadeza, sua magreza, sua negritude, sua altivez foi um grande companheiro, o que já encontrei de mais honesto nestes tempos difíceis.

Então, meu querido Galaxi A5 (2015), vou te chamar de meu Nexus 6 (mas aquele do Blade Runner!!!!), aquele que ensinou a Deca o sentido da vida. Te homenageio deixando primeiro as palavras de Ronald de Carvalho:

Sobre uma rosa aberta um besouro vem e vai
O vento chega. O besouro foge.
E, folha a folha,
A rosa se desfolha,
e cai…

E depois as palavras do próprio Nexus 6, que se recusava a morrer, assim como você, mas enche tudo de esperança e dignidade com sua coragem e exatidão:

“Estes olhos viram coisas que olhos humanos jamais verão. Mas essas coisas se perderão no tempo, como lágrimas na chuva”.

– Publicidade –

Outras publicações