terça-feira, 10 de dezembro de 2024

OPINIÃO: Sarney, “a questão que se coloca”

O Brasil é um cenário de tragédia shakespeariana. Onde tudo é podre, pior que aquele “reino da Dinamarca”. Onde sobra apenas a ingenuidade como resquício do bem. O resto são coadjuvantes de segunda, terceira, quinta categorias.

Vi a comoção estampada nos olhos de políticos, jornalistas e blogueiros, como aqueles outros “olhos dos pobres” de Baudelaire. Tudo isto pela possibilidade da derrota de José Sarney. Mas, perante este mundo líquido, de ilusões e prestigitadores, tudo pode acontecer, principalmente, nada, ou como escreveu Heidegger “o mundo surge diante do homem aniquilando todas as coisas particulares que o rodeiam e, portanto, apontando para o nada”.

Este é o cenário da vida. É aqui que somos, que existimos como entes, no qual praticamos a nossa angústia ou a nossa mediocridade. A possibilidade de o Sarney ser preso, ainda que domiciliar, de usar tornozeleira, causou uma iluminação nos adversários da velha raposa.

Embora tenhamos tido a prisão de um senador, de um presidente de uma grande companhia, coisas inéditas no Brasil, e se aceitando a justeza do pedido, será que a megaestrutura em que a nossa sociedade se assenta seria capaz de demonstrar tamanha lucidez e loquacidade e seguir rumo a um crescimento político e social onde a lei é igual para todos?

Sarney é um homem de alteridades. Muda radicalmente para permanecer o mesmo. Está intocável ali na sua casamata flutuante e indestrutível. Se a nós só é possível ser no mundo (o Dasein de Heidegger), também nos força a suportar uma coexistência de seres-aí; e a cada dia povoamos com maior excesso este extenuado planeta.

Mas o que vejo é a angústia de homens em dividir o ser-aí com Sarney e todos as alteridades dele. A situação, no momento, é uma aporia caseira. Que pode terminar numa resposta artaudiana ou um eterno rebus sic stantibus, um rio (Aqueronte) que vai desaguar no oceano do Nada.

Para muito o “pedido de prisão” de Sarney (que por enquanto foi apenas “vazado”) já constitui uma derrota dele e uma vitória destes, mas vitórias, assim como verdades, são mutantes, intermitentes, por vezes caem na frivolidade do consumo ou do poder.

Bem,

“A QUESTÃO QUE SE COLOCA…

O que é grave/ É sabermos/ que atrás da ordem deste mundo/ existe uma outra/ Que outra? /Não o sabemos./ O número e a ordem de suposições possíveis/ neste campo/ é precisamente o infinito!/ E o que é o infinito?/ Não o sabemos com certeza./ É uma palavra/ que usamos para designar/ abertura/ da nossa consciência/ diante da possibilidade/ desmedida, inesgotável e desmedida./ E o que é a consciência?/ Não o sabemos com certeza./ É o nada./ Um nada/ que usamos/ para designar/ quando não sabemos alguma coisa…”.

Para os mais curiosos, é buscar o resto do poema de Antonin Artaud. É bem extenso, mas cada verso cabe para o nosso país.

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