Críticos da obra de Karl Marx dizem que ela é calcada na de Georg Hegel. Da estrutura dialética a frases como a que teria iniciado sua ironia a Napoleão III, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
Como ideólogo do comunismo, sabia do que estava falando e do que viria.
Observando-se com isenção a história, é fácil constatar a reincidência no seu enredo. Mais vezes até do que o número que Jesus diz a Pedro que deve perdoar o pecador: Não sete, mas setenta vezes sete.
A recorrência é fácil de explicar: egoísmo e ambição. Aí vale tudo.
Revisitem-se os conflitos tribais desde a era mais primitiva às guerras sofisticadas de hoje. A (des)informação e a comunicação usadas cada vez mais como Cavalos de Tróia invisíveis. O emprego cirúrgico da tecnologia letal. O risco permanente da autodestruição planetária, num apertar de botão, reconhecimento facial, digital, de retina, ou leve toque na tela de um celular. No percurso, as tentativas de exterminação de povos inteiros, para lhes tomar os territórios. Algumas, com êxito; outras, em parte. Os recursos usados variam ao longo do tempo. A tecnologia tem permitido maior eficiência e eficácia nesse desiderato. A brutalidade que emergia da rudeza primitiva foi-se aperfeiçoando em maldade consciente, crueldade mesmo, com requintes diferenciados de impiedade.
A farsa e a tragédia se revezando ao sabor das obsessões doentias de quem está no poder.
Assim como os meios de dominação e destruição evoluíram, também os discursos de fachada e as formalidades cerimoniosas foram deixadas de lado.
Alexandre, o Grande
A desfaçatez está à mostra, exibida triunfante, afrontosa, impune, no comando da farsa e da tragédia. Não há criatividade, senão na maldade, em intensidade e extensão. Tudo, porém, doloroso desperdício à humanidade. Disso já sabia até Alexandre, o Grande, que aos 20 anos tornou-se Rei da Macedônia e poucos anos depois, derrotando os persas, construiria um império, da Grécia à Índia.
Morto aos 32 anos, de causa desconhecida e até hoje objeto de estudos, Alexandre teria pedido aos seus generais que seu caixão fosse carregado por médicos, para lhes mostrar que não têm poder sobre a morte; que a prata, o ouro e as pedras preciosas que conquistara fossem espalhados pelo caminho, para mostrar às pessoas que bens materiais não as acompanham na viagem da morte; finalmente, que suas mãos ficassem balançando do lado de fora do caixão, para que todos vissem que deste mundo partimos de mãos vazias, como chegamos.
Essa realidade não muda. Basta visitar a história, com cuidado, para não se deixar enganar pelas fake news, tema analisado com maestria pelo eminente jurista e magistrado Paulo Brasil Menezes, em obra com esse nome – Fake News -, prática que entrou na rotina diária das pessoas, recebendo-as, compartilhando-as, enfim, criando uma área nebulosa, cinzenta, onde a verdade não existe. É criada, imposta, desde os tempos de Adão e Eva, que sucumbiram à fake news da traiçoeira serpente.
Hieróglifos, figuras e escritas em pedras e tábuas, pergaminhos, papéis, jornais, revistas, folhetos, livros, cartuchos, K7, VHS, fitas e cartões perfurados, disquetes, cds, dvds, pen drives, HDs e agora cirros, cúmulos, estratos e nimbos são repositórios incríveis da reiteração de farsas e tragédias.
O discurso do Senador Sarney
Nos Anais do Senado Federal, na fantástica web, precisamente na 25ª Sessão Deliberativa Ordinária do dia 20 de março de 2002, há um desses registros que se imortalizam pela atemporalidade, pela atualidade diante das farsas e tragédias da história. É um discurso do então Senador José Sarney, sempre lembrado quando vejo as falas arrogantes, paranoicas e cruéis dos Darth Vader, Hannibal Lecter e Norman Bates que se revezam sob os aplausos da mídia corrompida, de oportunistas, fanáticos e ignorantes.
Personagem dos mais importantes da história do País, com trajetória ímpar, postura respeitável, responsável pela administração pacífica de um dos momentos graves da história nacional, José Sarney foi sempre criticado com intensidade e virulência. Entretanto, nunca soube do Senador se deixar dominar, como os maus, pelo ódio, escorrer bílis de raiva pelos cantos da boca ou divertir-se ironizando ou atacando adversários, saboreando gosto de sangue espelhado na perversidade do olhar.
Disse o Senador Sarney naquele discurso, sinceramente emocionado, como orador talentoso que é: “As conversas privadas entre homens públicos devem ser respeitadas.” Explicou: “Falo pelo dever que tem um ex-Presidente da República – de defender o país e suas instituições, e a base delas são os direitos individuais. O direito de cada um de nós não ser espionado, escutado, seguido, perseguido, tocaiado pelo aparato do Estado, construído para proteger os cidadãos.”
O Senador estava indignado com os “atos de violência política que aconteceram no Maranhão” e que visavam inviabilizar a candidatura de sua filha Roseana à Presidência da República. Disse claramente: “planejou-se esse escândalo com o objetivo de afastá-la da sucessão.” O prestígio da ex-governadora, conquistado pelo seu carisma, contribuía favoravelmente para viabilizá-la.
Padre Vieira
O Senador Sarney, conhecedor da obra do padre Vieira, referiu-se ao episódio de seu encarceramento “pelo Tribunal do Santo Ofício, também, sem saber do que era acusado. Sabem qual o método da Inquisição? Os juízes lhe perguntaram: — Por que está sendo processado? Vieira respondeu: — Eu é que devo dizer? Não os senhores? Será que é por causa da defesa que faço dos judeus? Responderam-lhe eles: — O Senhor acaba de confessar sua culpa. Era assim o método da Inquisição.”
José Sarney arrematou a citação: “Isto foi em 1663. Estamos em 2002 – 340 anos depois – e o método não mudou. Há que se perguntar ao acusado, e é ele quem tem que responder do que está sendo acusado? Vieira chamou seus julgadores de “equíssimos doutores” e, em seguida, esclareceu que não falava de equus mas de equidade.”
Mais adiante, o Senador fez perguntas como um Júlio Verne antecipando os fatos: “Quem acredita neste país, qual o idiota, que uma ação desta magnitude seria armada sem que a máquina estatal de nada soubesse ou dela não participasse? Quem nesse país não sabe que foi uma ação política suja, com propósito determinado?” (…) “E, para farsa geral, com o timbre sigiloso. Sigilo para proteger o vazamento, a calúnia, a mentira, o desrespeito à dignidade das pessoas, expostas a versões falsificadas, difamadoras e interessadas.”
Perguntou o Senador Sarney: “De que adianta dizer a Constituição que todos têm direito à defesa, que ninguém é culpado senão depois de julgado pela Justiça em procedimentos legais? O aparato do Estado espalha, sem defesa, versões, documentos e calúnias. É assim que funcionavam os Dops, a Gestapo, pior hoje, neste tempo de comunicação em tempo real, em que a imagem de defesa é impossível.”
Olga Benário
Caminhando para o final de seu discurso, disse o Senador José Sarney: “Precisamos ter cuidado quando quisermos julgar as aparências de atos formais como sendo atos legais. Sabe-se como se fazem estas coisas. Não devemos esquecer: Quantos milhões de pessoas foram levados ao forno crematório e às valas da Sibéria por investigações, inquéritos, papeluchos. Por um mandado foi Olga Benário levada das masmorras do Estado Novo para o campo de concentração. Processos, inquéritos, condenações políticas forjadas, foram sempre métodos de intimidação e liquidação de adversários, métodos já ultrapassados na humanidade. O Brasil não pode ter inquéritos secretos para provocar o medo, o terrorismo moral. É este o estado democrático que queremos?” “(…) Que se diga a qualquer cidadão de que é acusado, tipifique seu crime, se assegure o direito de defesa. Que se condene quem tiver culpa. Mas que não se invoquem simulacros, mascarados sob a capa de formalidades. Seja respeitado o processo legal. Respeitem os direitos individuais, as garantias constitucionais, e não usem o Estado para esse tipo de ação que denigre o país e as instituições. Não persigam.”
No caminho, com Maiakovski
Poeta, o Senador encerra seu discurso com o poema E não sobrou ninguém, do pastor alemão Martin Niemöller, algumas vezes atribuído equivocadamente a Vladimir Maiakovski ou Bertolt Brecht. Um poema que certamente inspirou Eduardo Alves da Costa, que refez o drama, com versos a que deu o nome de No caminho, com Maiakovski, o que talvez tenha gerado a confusão sobre a autoria do poema original. A mensagem é parecida. No caminho, com Maiakovski, Alves da Costa verseja: “Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim. / E não dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem: / pisam as flores, / matam nosso cão, / e não dizemos nada. / Até que um dia, / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a luz e, / conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. / E já não podemos dizer nada.”
E não sobrou ninguém
Disse o Senador: “O que vejo no Brasil de hoje é o medo dos dossiês, das escutas, da espionagem na vida privada das pessoas. Todos têm medo. Ninguém tem confiança de que o aparato estatal não seja jogado contra si.”
E finalizou: “É sempre bom lembrar o pastor Niemoller, um dos líderes da resistência protestante contra o nazismo: `Quando vieram buscar os comunistas, eu não disse nada, eu não era comunista. / Quando vieram buscar os judeus, eu não disse nada, eu não era judeu. / Quando vieram buscar os católicos, eu não disse nada, eu não era católico. / Então vieram me prender, e não havia mais ninguém para protestar.’”
A atemporalidade do discurso do Senador está inclusive na atualidade de seu apelo final: “Peço que meditem sobre isso os políticos, a imprensa, o governo e o povo brasileiro.”
*Advogado e jornalista.