António Damásio, em A estranha ordem das coisas (2017), diz ser desalentadora a “atual crise da condição humana”. Intriga-se porque, apesar da variedade das condições locais mundo afora, “ensejam respostas semelhantes, caracterizadas por raiva e confronto, além de apelar para o isolamento e resvalar para a autocracia” (2017, p. 242).
Para Damásio, tal crise “não deveria estar acontecendo.” Esperava que “pelo menos as sociedades mais avançadas tivessem sido imunizadas pelos horrores da Segunda Guerra e pelas ameaças da Guerra Fria.”
É uma indignação surpreendente para um intelectual que fez suas observações no passeio de seus pensamentos “das longínquas tribulações do Império Romano à atual crise da condição humana”.
A Primeira Guerra Mundial também deveria ter o caráter imunizante pretendido pelo Autor. 17 milhões de pessoas perderam a vida. Antes, a Revolução Francesa (1789), a Guerra de Secessão (1861), a Guerra Civil Espanhola (1936). Serviram, todas, mais para aperfeiçoar os meios de destruição e fortalecer resistências do que para pacificação.
Alexandre, o Grande (356 a. C.), Gengis Khan (1207), Napoleão Bonaparte (1804), os Césares (Século IV a. C.) são outros exemplos de que a ambição do homem não tem limites nem efeito imunizante. Tem versões para manipular as massas, como uma das alegadas por Hitler para deflagrar a Segunda Guerra Mundial: a suposta humilhação imposta à Alemanha no Armistício de 11 de novembro de 1918, em Compiègne, na França.
Para dar visibilidade a tal argumento, Hitler exigiu que a rendição da França, em 22 de junho de 1940, fosse feita no mesmo vagão no qual fora assinado o armistício de 1918. Revanche. Vingança.
Oitenta e cinco milhões de mortos. Mas a indústria bélica evoluiu extraordinariamente. Armas, aviões, navios, submarinos, transportes e tanques de guerra foram aperfeiçoados e construídos intensamente entre 1939 e 1945. Antes, essa indústria já vinha sendo desenvolvida. Incrementou-se no curso da guerra. E não parou mais de aperfeiçoar seu poder destrutivo.
A ciência evoluiu, mas o que a torna útil é a tecnologia. E esta serve para o bem e para o mal. Para Damásio, “Esta poderia ser a melhor de todas as épocas para estar vivo, porque estamos imersos em descobertas científicas espetaculares e brilhantismo técnico que tornam a vida cada vez mais confortável e conveniente.”
Ele mesmo, porém, admite: “Uma parte das sociedades que celebram a ciência e a tecnologia moderna, e que mais se beneficiam delas, parece espiritualmente falida, no sentido secular e espiritual do termo ‘espiritual’. A julgar por sua aceitação despreocupada de crises financeiras problemáticas …, elas também parecem falidas moralmente” (p. 243).
As elites, sejam elas quais forem, não se importam com a humanidade, mas tão somente com o poder. Os rótulos, finalmente, estão sendo desvendados. A desfaçatez descartou os disfarces, os discursos. As relações espúrias já não são mais segredos.
Que se cuidem as pessoas de boa-fé.