Conheça a história de vida de Josué Montello

Foto: Reprodução

Por Geraldo Iensen

No seu apartamento em Paris, Josué mantinha sob o vidro da mesa de trabalho um velho mapa de São Luís, criado pelo geógrafo Justo Jansen. E, no papel deitado sobre esse vidro e esse mapa ele produziu a maioria das páginas de Cais da Sagração, um romance que singra as águas do litoral maranhense entre a ilha de São Luís e algum lugar da baixada ocidental.

O escritor Josué Montello, como muitos maranhenses talentosos, foi um desterrado. Saiu da cidade natal muito cedo, aos 19 anos, indo para Belém, e, no mesmo ano, já estava no centro nervoso, cultural, político e administrativo do país: o Rio de Janeiro, ainda naquela primeira metade conturbada do século XX.

De pai italiano e mãe portuguesa, Josué de Sousa Montello nasceu em São Luís, em 21 de agosto de 1917. A cidade é personagem presente na obra monteliana, e não como mero assessório, mas como um ser vivo que pulsa e, em muitas vezes, agoniza junto com seus outros personagens.

São Luís, seu povo e seus sobrados são um marco de memória no autor, seja nos romances, nas crônicas ou nos diários.  Como ele mesmo escreveu, cruzou muito o trecho entre os bairros da Praia Grande e Desterro para buscar o aprendizado no Liceu Maranhense, onde iniciou os estudos que o levariam a grandes voos literários, diplomáticos e acadêmicos.

Aos 15 anos, já integrava a Sociedade Literária Cenáculo Graça Aranha, grupo de intelectuais que buscava trazer as ideias modernistas para o circuito literário maranhense e já publica na imprensa local. No final de 1936, muda-se para o Rio de janeiro e passa a publicar seus trabalhos em periódicos como CaretaO Malho e Ilustração Brasileira, os principais veículos nacionais ligados à literatura, naquele tempo. Nesse período surge o primeiro romance de Montello, Janelas Fechadas, publicado em 1941.

O romancista dentro do servidor público

A carreira literária segue junto com a de professor em universidades no exterior, atuando em países da América Latina e Europa. Foi professor da Cadeira de Estudos Brasileiros, da Universidade Maior de São Marcos, em Lima, Peru entre os anos de 1953 e 1955; professor da Cadeira de Literatura Brasileira, da Universidade de Lisboa no ano de 1957 e da mesma disciplina na Universidade de Madri em 1958.

Em uma de suas experiências de atuação diplomática, durante a temporada em que exerceu o cargo de Conselheiro Cultural da Embaixada do Brasil em Paris, nos anos de 1969 e 1970, começou a escrever um de seus títulos mais reconhecidos, Cais da Sagração, obra protagonizada pelo Mestre Severino, personagem emblemático do escritor maranhense. No seu currículo de atuação internacional Josué ainda traz o cargo de Embaixador do Brasil junto à UNESCO de 1985 a 1989.

Josué Montello também foi muito presente no serviço público em seu país, ocupando cargos estratégicos, em âmbitos federais e estaduais, quase sempre ligados a questões culturais. Foi diretor Geral da Biblioteca Nacional (nomeado em 1947) e do Museu Histórico Nacional. Foi fundador e dirigiu o Museu da República (Palácio do Catete). Entre os anos de 1967-1968 foi o Presidente do Conselho Federal de Cultura.

Seu estado natal, e uma de suas paixões, teve Montello de volta em algumas ocasiões. Primeiro, em 1946 quando exerceu o cargo de Secretário Geral do Estado do Maranhão, durante a intervenção de Saturnino Belo.

Outra temporada que Josué esteve de volta à terra de Gonçalves Dias foi durante o tempo que serviu como reitor da Universidade Federal do Maranhão. Nesta época, depois do grande sucesso de Cais da Sagração, que já estava traduzido para outras línguas e sendo bem recebido no exterior, começou a surgir o que viria a ser sua obra mais reconhecida: Os Tambores de São Luís.

Josué conta, no posfácio do livro, que o cargo de reitor concomitante com o de membro do Conselho Federal de Cultura o obrigaria a estar em constante viagem entre São Luís e Rio de Janeiro, mas que este desafio a mais não foi empecilho para a composição do Romance, “escrito ora em terra, ora a bordo de um avião”, que teve a versão inicial finalizada quase que ao mesmo tempo em que o exercício da reitoria.

Uma vasta obra

Josué Montello era um incansável. A reboque de toda a atividade do serviço burocrático como servidor público, compôs uma vasta e diversificada obra literária, atuando em vários gêneros.

Mesmo com a morte do autor em 15 de março de 2006, a obra continuar a somar volumes com o lançamento de trabalhos sobre ele, relançamentos, organizações de coletâneas entre outras.

A obra de Josué Montello reúne cerca de 160 títulos, entre estes 26 romances, 27 ensaios, 9 peças de teatro, além de novelas, literatura infanto-juvenil, produção científica e uma vasta coleção de crônicas que vem reaparecendo em forma de coletâneas após seu falecimento.

Uma dessas coletâneas foi lançada em 2017 em alusão ao centenário de Josué. Reúne seus escritos no Jornal do Brasil de 1955 a 1965 (com um segundo volume que vai até 1997) sob o nome de Escritores Maranhenses 1955 – 1965. Nessa coletânea notamos o amor de JM por seus amigos de São Luís, escritores maranhenses do passado e a paixão pela cidade. Como na crônica dedicada a Aluísio Azevedo, onde ele escreve: “Para mim, se O mulato, na galeria de Aluísio Azevedo, não é o melhor de seus livros, é, entretanto, o que me proporciona mais agradável releitura, pelo encontro do ambiente de minha cidade natal, que serve de cenário à narrativa naturalista que consagrou Aluísio como grande romancista”.

A saga maranhense

Com uma carreira intelectual consolidada, Josué atinge alto grau de destaque como escritor, e, mais ainda como romancista. Parece que se encaixa de forma perfeita na ideia do japonês Haruki Murakami e pode ser chamado de “romancista como vocação”. Foge da classe de escritores de “um romance só”. A vida de Josué está sanguineamente ligada ao romance; eles se misturam.

Um personagem, um romance e seu criador

Quando aquele jovem senhor descia a Rampa do Palácio rumo ao Cais da Sagração, talvez não soubesse que se depararia com o que vinha procurando, com a imagem da sua construção. Era como se uma voz lhe apontasse: “ali, Josué, bem ali”. E estava lá! Oculta sob as moitas do ar marinho, das guloseimas da vendedora de mingau ao lado do Coreto. Ali, mas onde?

Ali, pronta e perfeita a imagem do personagem que levaria para finalizar em Paris – ainda que reencontrada numa página de revista. Saía do ar quente, dos meses sem chuva do Maranhão para uma França que já esfriava a espera da neve. Pelo menos é o que nos declara Josué, misturando os dois prefácios de seu Cais da Sagração. Se nos fica a dúvida se Mestre Severino foi construído sobre um barqueiro naquele cais ou de uma foto de revista, não importa. O que importa é o Mestre Severino que se espalha pelas páginas do livro e nos insere num universo de mar e sol e Maranhão.

Cai da Sagração é um dos onze livros de Josué ambientados em São Luís e arredores, o que Franklin de Oliveira chamou de “saga maranhense” – embora, tecnicamente não seja uma saga – mas através desses romances nos reencontramos com a nossa história, com o nosso passado, a nossa jornada e a nossa identidade.

O historiador britânico Arthur Helps ensina que “Se você pretende compreender a sua própria época, leia as obras de ficção produzidas nela. As pessoas quando estão vestidas em fantasia falam sem travas na língua”. (Talvez por isso a releitura de O Mulato seja tão prazerosa a Josué).

Para quem quer repassar e compreender os momentos de glória, de sofrimento, de vitórias e derrotas na construção da identidade maranhense deve ler a “saga maranhense” (ou “epopeia maranhense” como preferem hoje os estudiosos) de Josué Montello, povoada por Abelardo e Alaíde, Mestre Severino e Lourença, Damião, Benigna, Dr. Lustosa, Major Ramiro Taborda, Malu e Ariana e os eternos tambores que troam seus rataplãs na velha São Luís.

Esse é o universo do grande romancista maranhense do século XX. Um verdadeiro homem de letras que entrou para a Academia Brasileira de Letras aos 37 anos, casa que presidiu nos anos de 1994 a 1995. Um escritor com o Maranhão correndo nas veias.

 

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