segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Je vous salue, Richelieu

Li e ouvi algumas considerações sobre o recente episódio alusivo à Santa Ceia, na cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris. Condenando e defendendo a exibição. Os que condenavam, baseavam-se, principalmente, no respeito que deve merecer qualquer crença religiosa e seus símbolos. Os que defendiam, alegavam o direito de expressão artística, a liberdade.

Sem entrar no mérito, mas considerando esses elementos básicos de cada posição, entendo que as duas correntes têm razão. O respeito é essencial para qualquer convivência saudável. A liberdade, também.

A questão, para mim, é conceitual. O que cada um entende por respeito e liberdade.  E coerência. Haver ou não haver coerência no entendimento de cada um sobre esses substantivos. A coerência pressupõe que quem defende respeito, respeita o direito alheio, inclusive à liberdade; quem defende liberdade, deve respeitar a liberdade alheia.

No caso, se a apresentação teve a aprovação da organização das Olimpíadas parisienses, faltou-lhe coerência, pois, impediu que um atleta brasileiro usasse, em suas pranchas, a imagem de um monumento carioca mundialmente conhecido como Cristo Redentor, aliás, construído na França, inclusive com a colaboração de franceses.

O argumento do Comitê Olímpico, segundo o noticiário, foi de que, pelo artigo 50 do regulamento da competição, “não é permitido nenhum tipo de manifestação ou propaganda política, religiosa ou racial”. Notificado, o atleta foi compelido a trocar as pranchas, sob pena de ser vetada sua participação.

Não é preciso muito esforço para se perceber a incoerência. Se a estátua estampada na prancha do surfista era de um monumento de seu país, não estava infringindo a regra suscitada. Se, entretanto, o monumento foi interpretado como manifestação religiosa, não há um mínimo de coerência na exibição da Santa Ceia – seja lá por quem ou da forma que fosse – ou de outra referência religiosa, independentemente da religião. Permitindo-a, o Comitê não respeitou a própria regra, porque usou dois pesos e duas medidas. Vetou a imagem de um monumento brasileiro, sob alegação de que era manifestação religiosa, mas permitiu a polêmica exibição da Santa Ceia, que é uma das mais eloquentes expressões do cristianismo.

O Comitê Olímpico foi igualmente incoerente no item da liberdade, pois, se permitiu a exibição da inusitada representação da Santa Ceia, apesar do artigo 50 de seu regulamento, não poderia vetar a liberdade do surfista de expor a imagem do monumento carioca, que recebe mais de dois milhões de visitas por ano, segundo dados do Parque Nacional da Tijuca, além de ter sido proclamado, em 2007, pela New Open World Foundation, uma das sete maravilhas do mundo moderno, juntamente com a Grande Muralha da China, Petra (Jordânia), Coliseu (Itália), Chichén Itzá (México), Machu Picha (Peru) e Taj Mahal (Índia), após concurso informal e popular por ela promovido, em consulta no mundo inteiro e apuração de mais de cem milhões de votos.

Sabe-se que a ignorância ronda o mundo contemporâneo e muitas das pessoas que ocupam cargos de comando, públicos ou privados, os conquistam menos por competência do que por ingerências políticas (?) ou interesses financeiros, mas, com certeza não é sequer razoável que o Comitê ignorasse a Santa Ceia e não imaginasse que a representação feria o artigo 50 do regulamento, usado com veemência contra o surfista brasileiro.

Ou será que alguém do Comitê disse que aquela era apenas uma apresentação artística alusiva à tela de um tal Leonardo da Vinci, exposta no Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, Itália, sem qualquer significação religiosa?

Quanto ao mérito da performance, por quem faz e quem assiste, é avaliação e opção pessoal.

Lembro-me de que, quando estava na presidência da OAB-MA (1985/1989), o filme Je vous salue, Marie, foi proibido no Brasil. Um grupo de universitários me procurou na sede que havíamos inaugurado, na Rua do Alecrim – a primeira sede própria da OAB-MA no Maranhão. Queriam ver o filme. Garanti-lhes isso, por entender que era um direito deles. E que a mim, apesar de gostar muito de cinema e da propaganda que a proibição ensejou ao filme, não interessava, mas, como dirigente de uma instituição cujo estatuto (Lei 4.215/63) previa, em seu art.  18, I, como competência do Conselho Federal (e consequentemente dos Conselhos Seccionais, art. 28, I) a defesa da Constituição da República, não poderia agir de forma diferente, porque jamais me ocorreu tomar decisões na Instituição para atender gostos ou interesses pessoais, meus ou de terceiros, senão para defender a Constituição, o Estatuto e o Código de Ética da Advocacia.

E a Constituição da República (1969, artigo 150, §6º e 7º) assegurava aos brasileiros a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade e, por motivo de crença religiosa, ninguém poderia ser privado de qualquer dos seus direitos, salvo se a invocasse para eximir-se de obrigação legal imposta a todos, assim como era livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica e a prestação de informação sem sujeição à censura, salvo quanto a espetáculos de diversões públicas, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer.

Vejo, portanto, nas suas contradições, que o Comitê Olímpico surfou nos novos padrões de interpretação normativa. Desrespeitou o regulamento, ao permitir o que era vedado; desrespeitou a liberdade do brasileiro, ao lhe negar o mesmo direito conferido ao simulacro dos apóstolos; desrespeitou o regulamento, pela natureza inequivocamente política de que se revestiram ambas as suas decisões. Essa era uma incidência – manifestação política – também vedada pelo mesmo dispositivo usado contra o monumento carioca.

Mas o Comitê Olímpico não inovou em fazer de seu regulamento um instrumento flexível ao sabor das mais esdrúxulas conveniências.  Afinal, estão por aí nações inteiras sendo comandadas por psicopatas que, sob o discurso de defesa da democracia, violam todos os seus princípios.

 Quem sabe tudo não passou de uma encenação mais ampla para homenagear o francês Armand Jean du Plessis, pois, no absolutismo do Cardeal de Richelieu, as condutas discriminatórias do Comitê Olímpico encontrariam guarida.

* Advogado e jornalista

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