Em que pese o poder destrutivo potencializado pela mídia, há sobreviventes ao COVID-19. Pelo menos até a próxima praga. Mas a atual pandemia já causou um grande estrago em todos os sentidos. Contudo, nada é tão bom que não possa melhorar, nem tão ruim que não possa piorar. Não tenho conhecimento de nenhum momento em que de maneira generalizada o caráter das autoridades públicas tenha sido exposto, revelando do que são capazes.
O inglês Robert Bolt encerra seu romance A Missão (São Paulo, Best Seller, 1987) com um diálogo definitivo sobre o homem e o mundo. O livro trata do conflito entre portugueses e espanhóis, a Igreja no meio, no fim do século XVII, quando os jesuítas faziam um trabalho de conversão dos índios na América do Sul. Para liquidar com as missões foi cometida uma chacina contra os guaranis. Para a justificar, um interlocutor diz ao padre Altamirano, “negociador veterano”, enviado para “averiguar as consequências do tratado (de Madri) para as missões jesuítas”, apesar de que, “Em vista da situação geral, não seria difícil adivinhar qual seria a resposta à questão” (p. 183):
– O senhor não tinha escolha. É preciso se trabalhar no mundo real. E o mundo real é assim.
Apesar de descrito como carente de escrúpulos, corrupto que “sabia de que lado soprava o vento” (p. 183) – Oh, não. – exclamou Altamirano – Nós é que o fizemos assim. (p. 277).
Louis Armstrong, em uma de suas inúmeras interpretações da inesquecível “What a wonderful world”, diz (tradução livre): “não é o mundo que é tão ruim, mas o que estamos fazendo para ele.” (Veja o vídeo!).
Essas conclusões contrariam Rousseau, para quem o homem nasce bom e a sociedade é que o corrompe. Não é o vírus que está fazendo o mundo ruim. Não tem este texto a pretensão de avaliar ou julgar ninguém, mas constatar o que está aparente diante da presente pandemia, no que se refere à confiança dos cidadãos no Poder Público.
Como acreditar que tantos milhões que têm sido destinados ao combate ao COVID-19 serão efetivamente aplicados para esse fim, se nem mesmo ao atendimento rotineiro o Poder Público dá conta e os números de mortos por falta de leitos, de medicamentos, de médicos, de equipamentos é bem maior do que o de vítimas fatais do novo corona vírus?
Como acreditar que os municípios aplicarão corretamente os recursos destinados ao combate ao COVID-19 se não conseguem sequer manter postos de saúde e até a merenda escolar – que combate a morte por inanição – é impiedosamente desviada?
Como estão sendo aplicados esses recursos, se nem aos profissionais da saúde – que são os que socorrem os doentes na linha de frente – têm sido assegurados os equipamentos eficazes para sua proteção?
Não há sequer diálogo e nem respeito para enfrentar a situação com a responsabilidade dos cargos que ocupam.
Espera-se que o Ministério Público esteja atento para os valores que o Poder Público tem recebido e no que estão sendo gastos. A OAB também deve estar atenta para contribuir nessa fiscalização. E os Conselhos dos profissionais da área de saúde devem atuar com rigor para lhes assegurar a proteção necessária para a arriscada e desafiadora missão de que estão incumbidos.
*Advogado e jornalista