Acho que é um dos momentos mais delicados da história da música do século XX. Uma precisão, um desalinho sofisticado, fumaça, suor… Os últimos homens reais? Miles Davis morreu de pneumonia no dia 28 de setembro de 1991, tinha apenas 65 anos. Isso é o mais áspero, como a áspera luz laranja da Baia de Guanabara. Logo de pneumonia?! Ele soprou todo o ar que pode para nós. Não sobrou…
Ele soprou uma onda de encantamento. E daí? Nos pergunta. E o trompete vai traçando uma corda de esperança entre nós e a areia, entre o átomo e as veias, enquanto nos equilibramos em vastos campos de glicínias. So what? É isso que o trompete grita enquanto os médicos tentam entubá-lo… mas é impossível. Ele é o próprio tubo. E daí? O coração explode…
Quando eu estudava trompete na Escola de Música Lilah Lisboa, no começo dos anos 90, talvez procurando um eco de Miles, no meu Jupiter, talvez buscando, não a resposta, mas reafirmando a pergunta: E daí? Ou sei lá… nos ecos daquela casa tão linda que hoje é o CACEN, naquelas escadas que gravei Ana Rodrigues cantando Besame Mucho, para a trilha da peça terceira Canção de Muito Longe.
Naquela salinha abafada que, quando aparecia, meu professor de trompete gastava dois terços da aula falando de jazz e no final me ensinava um trinadozinho ou outro. Eu só falava de Miles Davis e ele sempre repetia que preferia Winton Marsallis.
Mas Miles impregnava todos os caminhos que eu passava. A fúria de Miles, um Atlas do som. E daí? Tudo! Ter conhecido Miles Davis faz toda a diferença do mundo. Ele salvou a minha vida! Miles nos explica porque Jobim é genial. E daí? Num mundo manco como esse tudo é distorção. Uma funkeira na abertura do grande bazar das olimpíadas e o mel do samba nas paraolimpíadas. Quem são os mancos? E daí?
Hoje faz 25 anos que parece que Miles morreu. Miles vive, com seu punho negro levantado. Com sua genialidade e seus maus modos. Um trompetista troca as vísceras pela poesia. É um balão de gás colorido de encantamento. A alma sai pelo sopro. Um trompetista é um impregnador de almas. É um chá de melodias, uma injeção de alucinação pura entre as árvores do coração da Amazônia, o passeio pelas seis versões de Round Midnight gravadas por ele que tenho.
Miles Vive. E sempre viverá. Por que não era um homem, era uma pantera, uma sombra de outras eras, um Ent, um ânimo, um eixo, uma bala. E daí? Assim ele repetia, dândi, alheio… So What … So What… Os últimos momentos de Miles são todos os momentos, o cosmos: matéria escura.