sexta-feira, 26 de abril de 2024

“Que me ofereçam outro universo, ou sucumbo”

Neste momento de incêndios criminosos, de devastação, de descaso com o meio ambiente, com o rico bioma do cerrado, este texto escrito há 14 anos para o prefácio do livro “O cerrado é o chão”, do ambientalista Mayron Régis, só nos mostra que as urgências estão se tornando colapso.

“Que me ofereçam outro universo, ou sucumbo”

            A Arte e a Natureza me causam sensações semelhantes. A primeira vez que estive numa vereda experimentei uma alegria muito semelhante à que sinto ao ouvir (até hoje) a Nona Sinfonia de Beethoven, alegria, com efeito, o tema do poema de Sheller, texto usado pelo compositor. É mágica! Ao mesmo tempo em que aquela melodia, aqueles rompantes de pianíssimo pra fortíssimo característicos do Clássico fazem o corpo flutuar sem campo gravitacional, a vereda, com seu verde claro, seu farfalhar de capim e de folhas de buriti, o ventinho lento, confrontada com sua imensidão, nos fazem querer sentar e fazer parte daquele mundo. Lembrando Kant, via Deleuze, seria a minha liberdade se realizando, ou se efetuando na natureza.

            Essa vereda fica no Parque Estadual de Mirador, pertinho das nascentes dos rios Itapecuru e Alpercatas. Naquela época, final dos anos 90, a fronteira da soja já se esparramava sobre a serra.

            Sempre que leio Mayron e suas histórias dos sertões refaço seus discursos, seus ideais e suas influências. E é sempre a imagem das terras que conheci e das obras que discutimos que sobram como produto de reflexão. O discurso da Diferença dentro de nossas semelhanças.

            No período de produção desses textos, ora apresentados, um autor que tomava nosso tempo era Cormac McCarthy. Talvez pelos seus personagens percorrerem terras tão parecidas com as nossas e tão desoladas. Por enfrentarem desmandos e injustiças tanto quanto nós enfrentamos. Mas a mim, o que sobra é o vazio, o mesmo vazio daquele menino de 17 anos que troca todos os seus ideais por uma loba, que, ao fim e ao cabo, ele mesmo mata. Esse menino perde pai e mãe, irmão e, a meu ver, se perde; é engolido pelo “mundo grande”. O romance chama-se Travessia (aquela última palavra, solta, sozinha, de Grande Sertão: veredas). A história de McCarthy se passa no começo do século XX, entre EUA e México, mas apresenta esse mesmo mundo infame e injusto de agora: de solidão e desalento, de desigualdades e infâmias.

            Outra obra que me lembra os textos de Mayron é Meu Ódio Será Sua Herança, filme de Sam Peckinpah, do final da década de 60, que se passa mais ou menos na mesma região e no mesmo período do livro de McCarthy. Aqui um bando de ladrões de banco se perde na enormidade do mundo e na insignificância da vida e das atitudes. É o filme mais violento que já vi. Cada um do bando, por motivos diferentes, dá uma completa reviravolta nos ideais, quando ocorre uma mudança de paradigma. É um pequeno grupo de cinco homens; às vezes os companheiros parecem ser inimigos, outras vezes o inimigo sonha estar do outro lado. Isso parece familiar?

            O que tem a ver?

Nada.            

Tudo.

Todos os dias me parece que o mundo está em colapso, que a proposta da modernidade com seus ideais, racional, industrial naufragou. E quando Mayron escreve “o conhecimento humano é que dá sentido à história e não o conhecimento técnico-científico”, parece corroborar essa idéia. Se é que a História pretende ou comporta algum sentido unívoco. Mas, com certeza, da mesma forma que o ideal Positivista se diluiu, essa Era da alta tecnologia não vai responder por nenhum salto na igualdade social no mundo, muito pelo contrário: o mundo está cada dia mais bárbaro, porém não há colapso, é a proposta social vigente, é o plano. Ou como diria Cioran “As ideologias só foram inventadas para dar um brilho ao fundo de barbárie que se mantém através dos séculos, para cobrir as inclinações assassinas comuns a todos os homens…”.

Ora somos um adolescente perdido e só, ora somos um bando conflitante e ora somos absolutamente nada, só violência. Os EUA que abarrotam a atmosfera de gases poluentes, e não assinam o Tratado de Kioto, o Japão que continua matando baleias e o Brasil que não respeita as próprias leis ambientais, ou respeita uma lei maior, “mais liberal”, mais “consuetudinária” – e conhecemos bem os costumes brasileiros quando o assunto é ganhar dinheiro. Mayron diz isso da seguinte maneira: “o sistema econômico, social e jurídico do Brasil comporta dois lados, os lados formal e informal, legal e ilegal”. Essa é a lei que impera nas devastações, na grilagem, assim como na ocupação urbana caótica que pode ser vista em qualquer cidade, onde amontoados humanos sobre lixo convivem com mansões cercadas por muros, cercas elétricas e segurança privada.

Por que Higienópolis é de um jeito e o Coroadinho é de outro? Seriam os moradores do Coroadinho cidadãos de categoria inferior? Nietzsche, em Além do Bem e do Mal abre o capítulo “O que é Nobre?” assim: “Toda elevação do tipo ‘homem’ foi, até o momento, obra de uma sociedade aristocrática – e assim será sempre: de uma sociedade que acredita numa longa escala de hierarquias e diferenças de valor entre um homem e outro, e que necessita da escravidão em algum sentido”. O cultivo da desigualdade é o Projeto de Sociedade em andamento. É a existência da Índia, da China, do Brasil que viabiliza Mônaco, Noruega, Suécia, Holanda e etc… Houve uma troca dos navios negreiros pelos transatlânticos abarrotados de óleo, de contêineres com produtos duvidosos. Esses navios vêm buscar soja, madeira, minério, ou seja, a matéria prima dos manufaturados que voltarão para a imensa sociedade de consumo.

            A madeira e o minério são arrancados da Amazônia, a soja é arrancada do cerrado e os biomas brasileiros suportam os custos desse sistema. Sustentar as gentes do mundo. E a mão de obra é essa parcela imensa da sociedade que vive um processo de semi-escravidão.

Há um discurso no qual a sociedade está organizada de maneira a crescer: o progresso. Defende-se (com guerra se for preciso) a democracia (mas só se tiver muito petróleo envolvido), a multiplicidade cultural (mas só se os produtos forem da indústria cultural), e etc. Não sei se há validade nesses valores – o discurso é tosco – mas sei que esse é um sistema falso: ele não defende de fato o que prega: não defende a democracia, nem a cultura, nada, defende apenas interesses ligados à manutenção do poder – do que a democracia é uma arma. Nas palavras de Habermas “a economia e o Estado – dois subsistemas da sociedade que desenvolveram mecanismos auto-reguladores como o dinheiro e o poder, que asseguram a “integração sistêmica”.

Mas, para a construção de uma nova narrativa, de um novo modelo, é preciso acreditar no sistema! E quando há uma falência geral independente de em qual instância da sociedade se está?

Segundo Schopenhauer, fora as necessidades naturais e necessárias e as naturais e não necessárias há uma terceira, que não é nem natural, nem necessária que é a necessidade do luxo, da opulência, da pompa e do brilho. “Elas são infindas e bastante difícil de satisfazê-las… É difícil, senão impossível, determinar os limites de nossos desejos razoáveis em relação à posse”.

Não há racionalidade na exploração, não há justificativa. Tudo calcado, justificado numa previsão de progresso, de futuro, que justificariam etapas, tudo está nas enxurradas. Leia-se o texto “Baixo Parnaíba: zona de transição”. Tudo é repetição de um modelo que vem provando o erro, o suicídio, como quando o autor compara, no texto “Baixo Parnaíba: cada uma que não é duas”, as fases do “açúcar e do café” com esse “momento da soja”. Mayron nos apresenta as aporias da modernidade. A desigualdade é prerrogativa da modernidade, assim como o era do feudalismo, pior ainda, constatamos a necessidade de análise da questão de Adorno e Hokenheimer: “por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie”.

Mayron segue, fazendo da textualidade sua luta.  Talvez interpretemos diferente a idéia de que “nada está fora-do-texto”. Eu, o anti-crítico, ele o otimista. É um orgulho acompanhar a produção e a luta de Mayron, mesmo sendo eu um autor de ficção e descrente das causas. Eu sigo como Cioran, procurando um outro universo – talvez a poesia – para não sucumbir. Se ele acredita na construção de uma nova narrativa, “em um meio e um fim”, eu sigo com o “fim da história”. E não creio em nenhum eudemonismo.

Mas na poesia encontramos nossa dialética; na sua análise áspera – como um bom cabernet-sauvignon – dividimos o mesmo mundo, com seus mentores cegos alucinados, obcecados. Esses apontados assim pelo autor “E, de vez em quando, pelo Maranhão, alguém se espanta porque o rio Itapecuru está morrendo e alguém propugna uma expedição pesquisadora, ou seria uma expedição evangelizadora, para saber as causas. Quem se espanta com a situação do Itapecuru é porque nunca divisou o Vão da Tróia e conversou com o Sr. Firmino sobre os olhos de água”.

São Luís, 13 maio de 2008.

Gerald Iensen, jornalista e escritor

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