segunda-feira, 18 de março de 2024

Cantor e compositor Erivaldo Gomes faz a passagem

Foto: Joedson Marcos

Hoje (02) pela manhã bem cedo fomos surpreendidos com a notícia da morte do cantor, compositor e percussionista Erivaldo Gomes. Penso que a ausência dele abre mais uma lacuna na cena cultural de São Luís, porque ninguém compunha de forma semelhante a Erivaldo, com um humor breve e certeiro, temperado com elementos do cordel e com a esperteza dos trocadilhos e versos leminskianos. Porém, com sotaque genuinamente maranhense.

Nós éramos amigos. Fui o autor da apresentação do seu primeiro disco, “Pensamentos Drobados” (escrito assim mesmo, com as letras trocadas). Recentemente, estávamos (eu e o professor e economista Felipe de Holanda) cuidando da edição do seu primeiro livro de poemas, intitulado temporariamente “Sem silêncio, não tem som”. Não deu tempo. Aqui deixo o prefácio que escrevi, adaptado para o momento.

Insights, aforismos e delírios

Por Eduardo Júlio, poeta e jornalista

Foto: Joedson Silva

Conheci o poeta Erivaldo Gomes muito antes do notório instrumentista e compositor. Foi em uma noite perdida no começo dos anos 90, dentro do lendário bar do senhor Adalberto, na Praia Grande, que ficava naquela extinta área de botecos no Centro Histórico de São Luís.

Naquele momento, ele recitou diversos micro poemas com espertos trocadilhos. Eu estava na mesa ao lado, no auge dos meus vinte anos, admirado com a sequência ligeira de versos e dribles poéticos.

Foi uma verdadeira goleada verbal, sem tempo para qualquer defesa. Evidentemente, fiquei impressionado com a irreverência, a criatividade e o raciocínio do artista.

Logo saquei que aqueles poemas carregavam um pouco da herança do cordel, no que diz respeito às rimas e à rapidez do improviso, aliada ao texto breve, bem-humorado e urbano de Leminski. Eram insights, haicais com sotaque timbira, aforismos, epifanias ou delírios. Talvez tudo ao mesmo tempo.

Alguns anos depois, em meados de 1997, em um encontro na casa do artista plástico Wagner Alhadef (falecido em 1998), novamente percebi a habilidade das palavras de Erivaldo Gomes (talvez semelhante a que tinha no toque dos tambores), quando apresentou uma de suas canções mais poéticas e memoráveis, “Chove, faz sol”, música que possui o seguinte refrão: “A paz dos vagabundos: uma praça, um jornal, um chapéu”.

Nunca me esqueci desses versos e da leveza como cantou, nos transportando imediatamente para o cenário da letra, para um lugar calmo, apropriado ao desapego.

Na atualidade, a composição é ainda mais valiosa porque trata de um contexto anacrônico, já que o vagabundo romântico é um tipo em completa extinção na selva neoliberal do trabalho escravo (travestido de favor), assim como o jornal impresso praticamente já desapareceu e o chapéu é um item raro na cabeça dos mortais.

Na mesma época, Erivaldo criou o inusitado Blofão, um bloco que saía religiosamente à meia-noite, pelas ruas da Madre Deus, entre a sexta-feira santa e o sábado de aleluia, unindo referências do carnaval e das festas juninas maranhenses.

Os judas eram três bonecos: fulano, sicrano e beltrano, que desfilavam pelo bairro dentro de uma gaiola, em cima de uma carroça. Os brincantes seguiam atrás, cantando, batucando, protagonizando um autêntico carnaval fora de época.

Mais tarde, Erivaldo Gomes se destacou como uma das melhores atrações de a “A Vida é Uma Festa”, evento semanal e colaborativo, realizado na Praia Grande, comandado por outro poeta e compositor da capital maranhense, ZéMaria Medeiros (o nome é escrito assim: junto mesmo). Muitas quintas-feiras ao longo dos anos 2000 foram marcadas pelo “baseadão” aceso do artista e por outros divertidos refrões das composições dele.

Foi o período em que Erivaldo Gomes lançou o seu único disco, “Pensamentos Drobados”, que incluía quase todas as músicas que se cantava junto naquelas noites inesquecíveis de alegria, irreverência e esbórnia. Eu tive a grande satisfação de escrever o texto de apresentação do disco, no qual tento descrever aquela quase inenarrável vivência.

Mas a vida obviamente se transforma e é sempre muito triste no final. No entanto, só resta pensar que tivemos a sorte de conviver com esse grande personagem e artista. Deixo alguns versos dele para a nossa reflexão: “Quando o brilho das estrelas apagar a sua visão/ é a própria clara idade da sua escuridão”, “Tudo morre/ só o nada eterniza”, “Ócio/ dos vícios o sócio”.

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