Milton Santos (1926-2001), considerado o maior geógrafo brasileiro, escreveu: “Existem apenas duas classes sociais, a dos que não comem e a dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem”.
Os que não comem começaram a entrar em desespero e passaram a demonstrar essa situação através do saque a um supermercado. O fato ocorreu ontem (17), à noite, e o alvo foi uma loja da rede Carrefour, na Zona Oeste de São Paulo.
Ações desse tipo foram previstas na semana passada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, em reunião da Frente Parlamentar Mista das Micro e Pequenas Empresas.
Na ocasião (11/03), o presidente falou: “Até quando nossa economia vai resistir? Se colapsar, vai ser uma desgraça. O que poderemos ter brevemente? Invasão a supermercado, fogo em ônibus, greves, piquetes, paralisações. Onde vamos chegar?”
É claro que Bolsonaro não atribui esses atos à situação a que o País chegou devido à sua desastrada atuação na condução do Brasil, em especial no que se refere à pandemia. Como sempre ele imputa a terceiros a culpa, no caso aos governadores, tendo citado nominalmente João Dória (SP) e Ibaneis Rocha (DF).
A verdade é que as vendas do comércio varejista (que refletem o consumo das famílias) estão em queda. O gráfico que encima esta matéria traça a trajetória das vendas no varejo no últimos meses, a partir de dados do IBGE, relacionando-os com a existência e a variação de valores do auxílio emergencial.
A correlação é clara. As vendas desabam com a chegada da pandemia, passam a crescer com o auxílio emergencial de 600 reais, se estabilizam quando o valor cai para 300 reais e passam a cair com a retirada do auxílio.
E conclui: no pior período da pandemia, o governo demora a retomar o auxílio. E o promete com valor ainda menor, por menos tempo e para menos trabalhadores. Resumindo : menos auxílio, menos renda, menos emprego.
Efetivamente, pelo texto aprovado no Congresso Nacional, o auxílio emergencial terá três valores diferentes para diferentes públicos.
Parcela de R$ 150: Será paga às famílias compostas por um único membro e será liberado para 20 milhões de famílias.
Parcela de R$ 250: Será paga para as famílias compostas por dois ou mais membros e será liberado para 16,7 milhões de famílias.
Parcelas de R$ 375: Será paga para as famílias onde as mulheres são as únicas provedoras do lar e será liberado para 9,7 milhões de famílias.
Os novos desembolsos só terão início no dia 16 de abril e se estenderão até o fim do mês. Ou seja, mais um mês ou mês e meio sem qualquer auxílio.
E, agora, somente uma pessoa por família vai ter direito às novas parcelas. Dessa forma, mais de 17 milhões de brasileiras e brasileiros contemplados nos auxílios do ano passado ficarão sem qualquer benefício em 2021. Isso atinge 26,82%, ou seja um entre quatro cidadãos que receberam auxílio emergencial em 2020.
Dessa maneira, entende-se o desespero dos que invadiram e saquearam o supermercado paulista, bem como se entende como é provável que tais acontecimentos tendam a se repetir.
O desespero, no entanto, é mau conselheiro. Visto por essa ótica, talvez a previsão de Bolsonaro seja, antes que um exercício de profecia, uma manifestação de sua vontade. A ocorrência de tais atos podem dar-lhe pretexto para adotar medidas repressivas que sirvam para tirar do regime atual qualquer disfarce e implantar de fato uma ditadura fascista.
De qualquer forma, como profeta, prefiro o grande Milton Santos ao medíocre Bolsonaro. O genial geógrafo mirou nos tempos de hoje ao dizer: “Jamais houve na história um período em que o medo fosse tão generalizado e alcançasse todas as áreas da nossa vida: medo do desemprego, medo da fome, medo da violência, medo do outro”.